Caro, caríssimo.
Tenho a leve impressão de que nós já nos vimos em algum lugar. Num passado não tão distante. Mas sabe como é a vida de uma pessoa que tem Alzheimer. Em um momento, lembramo-nos de tudo o que já passou. Por vezes, memórias das quais nunca mais nos lembraríamos: o primeiro passo, a primeira palavra, o primeiro tombo, o primeiro beijo, a primeira pessoa que foi capaz e lhe deu amor o suficiente para fazer de você seu homem ou sua mulher. Lembranças de um passado que há muito já passou.
Talvez nem ao menos tenha lhe conhecido de fato. Mas hoje, eu lembrei de você. Recordo-me o quanto eras "rebelde". Tinha os cabelos bagunçados, desajeitados. Por onde passavas as pessoas ao redor te olhavam com ar de desprezo. De certo, você tinha um motivo para isso. Fugere urbem. A sociedade burguesa, capitalista e consumista não lhe atraia como fazia com os outros. Talvez tudo isso tenha ocorrido à algumas décadas atrás desta em que vivemos. Provavelmente lerás esta carta com certo atraso, então configuro aqui a data de 27 de março de 1990. Voltando as lembranças. Você fumava. Pelo menos um maço de cigarros por dia. Não me perguntes como pude ser precisa assim. Já disse. Às vezes, as memórias vêm. Às vezes não.
Eu também fumava, não é mesmo? As fumaças dançavam pelo ar. Coloridas. Só nós dois víamos assim. E por vezes nos tacharam de loucos, drogados. Não. Nós não éramos isso. Eu me lembraria de algo tão marcante e decisivo de minha vida. Não lembraria? Pois bem. Não estávamos nem aí com o que os outros diziam, disseram ou iriam dizer sobre nós.
Não até o dia em que, mais que de supetão, fui avisada de que estarias na praia de Copacabana, aos beijos com uma mulher. Ela não era eu. E aquilo tudo não deveria estar acontecendo. Tentaste me explicar o que havia acontecido. Mas nada poderia mudar aquela situação. E assim se passou os segundos, minutos, horas, dias, meses e anos. Neste meio tempo fui diagnosticada com essa maldita – mas boa – doença. Conforme os anos se passavam, algo de minha memória ia embora. Como a água do chuveiro, que ao escorrer por nossos corpos se vai pelo ralo. Era assim que me senti dia após dia. Faltava algo em mim. Começou com pequenas palavras ditas, pequenos gestos. E antes que isso se prolongue - como irá se prolongar - resolvi lhe escrever, enquanto alguma coisa em mim ainda me faz lembrar de você.
Espero que estejas bem, onde estiver. E se receberes esta carta antes de meu falecimento inevitável, venha me visitar. Poderá ser que tenha lhe esquecido totalmente na mente. Mas algo em meu subconsciente e em meu coração dirá:
- Nós já nos vimos em algum lugar antes?
Com afeto, carinho e compaixão.
Lisa Mckgonagal
Escrito por:Pamela Moreno SantiagoPauta para a 36ª Edição Cartas, cujo tema era: "Lembrei de você". Ficou um terror, mas espero que gostem. Obrigada pelo carinho de todos e pelos selinhos. Os posto em breve. A foto não tem nada a ver com o texto, mas eu amo House *-*